Nota de esclarecimento e repúdio quanto à suposta maldição sobre negros e africanos
A
Aliança Evangélica vem a público para repudiar o uso inadequado das
Escrituras Sagradas, a Bíblia, juntamente com as interpretações e
afirmações daí decorrentes, especificamente as feitas quanto a supostas
maldições existentes sobre africanos e negros.
Afirmações desta
natureza são fruto de leitura mal feita de parágrafos bíblicos, tomados
fora do seu contexto literário e teológico, que acabam por colaborar com
os interesses de justificar pensamentos e práticas abusivas, contrárias
ao espírito da Palavra de Deus, cujo foco está na Justiça, na
Libertação e na promoção da Vida e Dignidade Humana.
O texto em
questão, que tem servido de pretexto para declarações insustentáveis,
tanto em púlpitos, redes sociais, na tribuna do Parlamento e até
protocoladas junto à Justiça Federal, sob o manto da imunidade
parlamentar, versa sobre o significado da passagem bíblica encontrada no
Livro de Gênesis capítulo 9, versos 20 a 27.
Nessa passagem Noé,
embriagado, despe-se e assim é surpreendido por seu filho Cam que, ao
invés de manter a discrição e o respeito devidos ao pai, o anuncia aos
seus irmãos; estes se recusam a ver o pai nesse estado e, sem olhar para
ele, cobrem-no com uma manta. Desperto Noé, ao saber da postura de seu
filho Cam, amaldiçoa seu neto Canaã, filho de Cam, destinando-lhe a
servidão.
O equívoco em questão dá a entender que a maldição
proferida pelo patriarca bíblico contra Canaã, seu neto e filho de Cam,
atinge os seres humanos de tez negra que habitaram, originariamente, o
continente africano, o que explicaria os vários infortúnios em sua
história passada e presente, culminando no longo período em que foram
feitos escravos no Ocidente; e que o ato de Cam em ver a nudez de seu
pai, mais do que um desrespeito, indica um ato de violação sexual por
parte de Cam.
Queremos salientar enfatica e categoricamente:
1. Cam teve outros filhos: Cuxe, Mizraim e Pute, e somente Canaã foi amaldiçoado.
2.
Embora o comportamento inadequado descrito no texto bíblico tenha sido o
de Cam, filho de Noé, o objeto específico da maldição foi Canaã, o neto
de Noé. [Segundo Orígines, um dos pais da Igreja, do século 3, Canaã
foi quem avisou seu pai sobre a situação do seu avô, publicando o que
deveria ter mantido sob reserva]. Amaldiçoar, no senso bíblico, não
determina a história, mas descreve a consequência da quebra dum
princípio estabelecido pelo ato desrespeitoso; portanto, significa a
percepção de efeitos e desdobramentos de um comportamento específico. Ou
seja, a postura de Cam e de seu filho Canaã estabelece um padrão
comportamental que resultaria numa situação de inversão paradoxal, onde
alguns dentre os descendentes de Canaã se tornariam dominados e
serviçais dos seus irmãos.
3. Canaã, neto de Noé, foi habitar e
estabeleceu-se na região a oeste do rio Jordão, até a costa do
Mediterrâneo (sudoeste da Mesopotâmia), onde os descendentes de Canaã
desenvolveram práticas absurdas, inclusive o sacrifício de crianças, e
não no continente africano!
4. É de entendimento entre os
teólogos especialistas no Velho Testamento que a maldição profética de
Noé sobre Canaã foi cumprida quando da conquista da região povoada pelos
descendentes de Canaã, os cananeus, por parte dos filhos de Jacó, sob o
comando de Josué há mais de três milênios.
5. A maldição
proferida sobre Canaã pelo seu avô Noé significou uma percepção e
discernimento sobre uma tendência comportamental de um grupo humano,
antevendo o resultado de uma corrupção cultural e civilizatória
específica e localizada, e em consequente servidão, e de modo nenhum faz
referência à cor da sua pele.
6. Não há nada, absolutamente
nada, nem neste texto bíblico em foco nem na Escritura como um todo, que
indique qualquer maldição sobre negros e africanos, e muito menos algo
que justifique a escravidão.
7. O texto bíblico precisa ser lido
em seu contexto imediato e considerado à luz da totalidade da Escritura,
como saudáveis práticas de interpretação bíblica nos ensinam. De acordo
com o próprio capítulo 9 de Gênesis, verso 1 e seguintes, é indicado
que o desejo de Deus e sua promessa visam abençoar, dar vida, alimento e
todo o necessário para o desenvolvimento de todos os descendentes de
Noé, seus filhos e de toda a família humana. A declaração divina de
abençoar a Noé e seus descendentes é firme e abrangente, e não pode ser
contestada ou reduzida pela declaração relativa e descritiva de Noé a
respeito de seu neto.
8. Deus reafirma o desejo de abençoar a
toda a humanidade, a todas as famílias da terra, raças e etnias no
episódio descrito na sequência da narrativa bíblica, quando da vocação
de Abrão (Genesis 12), intenção que tem seu ápice e culminância na
pessoa, vida e ministério de Jesus e continuado em curso na Igreja. Em
Cristo, toda maldição é destruída e uma Nova Criação é estabelecida,
sendo chamados a participar deste novo concerto todas as nações, etnias,
raças, povos e famílias de todas as terras e da Terra toda, sendo
revogadas assim todas as maldições e oferecida salvação a todas as
pessoas.
9. A alegada violação sexual de Cam a Noé não é
sustentada pelo texto. A citação do texto da lei de Moisés que chama a
violação de descobrir a nudez não dá suporte a tal alegação, uma vez que
os verbos usados são diferentes na raiz e no significado: no primeiro
caso, trata-se de observação a distância; e, no segundo caso, trata-se
de ato deliberado contra outrem.
10. Toda vez, na história, que
esse texto foi aventado a partir dessa hipótese vulgar, tratou-se de ato
de má fé a serviço de interesses escusos, seja quando usado para
justificar a escravidão de ameríndios no Brasil colonial, seja quando
usado para justificar a escravidão dos africanos de tez negra, seja
quando utilizado para a elaboração de sistemas legais de segregação
social como o que ocorreu nos Estados Unidos, seja quando usado para
justificar a política nefasta e mundialmente condenada do “apartheid”.
Tal
leitura equivocada da Escritura corre o risco de ser vista como
suspeita de esconder outros interesses de natureza política, econômica e
de dominação social e religiosa. Não há nenhum apoio bíblico para
defender qualquer maldição sobre negros ou africanos, que fazem parte,
igualmente e em conjunto, da única família humana.
Lamentamos o
equívoco provocado por tal vulgarização do texto bíblico, bem como a
banalização quanto ao conteúdo de nossa fé, assim como repudiamos
qualquer tentativa, intencional ou não, de uso inadequado do texto para
quaisquer fins que não o de promover a vida, a libertação e a justiça,
como a própria Escritura expressa muito bem.
Brasil, 07 de abril de 2013.
Aliança Cristã Evangélica Brasileira
Nota:
Publicado originalmente no site da Aliança.
quarta-feira, 24 de abril de 2013
Negros e africanos amaldiçoados?
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