domingo, 26 de junho de 2011

Ultimato entrevista o historiador Cristão Alderi Souza de Matos

A igreja é reformada, mas está sempre carecendo de reforma …
A reforma tem a ver com o resgate das convicções básicas da fé cristã, e o reavivamento, com o aprofundamento da vida cristã. Sem avivamento, a reforma pode tornar-se fria, formal e árida, reduzindo-se a uma mera preocupação com a ortodoxia. Sem reforma, o avivamento pode descambar para o emocionalismo superficial e efêmero. Os dois fenômenos nem sempre caminham juntos, mas deveriam caminhar. Esta é a análise do historiador Alderi Souza de Matos, 52 anos, do Centro de Pós-Graduação Andrew Jumper, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.
Com graduação em direito e filosofia, mestrado em teologia e doutorado em história, Alderi considera-se seguidor de Jesus Cristo desde pequeno. A vocação ministerial despontou em 1969, quando ele participou de um retiro no Acampamento Palavra da Vida. No ano seguinte, aos 17 anos, já era aluno do Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, SP.
Ultimato – Qual teria sido o primeiro movimento na história da igreja cristã que pode receber o nome de reforma?
Alderi – Em um certo sentido, o movimento monástico. É interessante que, já no segundo século, os documentos cristãos atestam a ocorrência de um declínio no nível espiritual e ético da igreja. Por isso, os chamados “pais apostólicos” (textos da primeira metade daquele século) revelam uma preocupação quase obsessiva com a moralidade como o aspecto mais importante e decisivo da vida cristã. O cristianismo passou a ser entendido prioritariamente em termos de obediência a preceitos, em contraste com a ênfase na graça encontrada nos escritos do Novo Testamento. No terceiro século, muitos cristãos concluíram que não era possível viver a vida normal em sociedade e serem fiéis discípulos de Cristo. Inspirados pelas palavras do Mestre ao jovem rico (“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me” – Mt 19.21), eles começam a retirar-se das cidades a fim de, na solidão e no isolamento, poderem se dedicar mais plenamente a Deus. Os dois mais famosos dentre esses “pais do deserto” foram Antão, no Egito, e Simeão Estilita, na Síria. Mais tarde, os monges deixaram de viver sós e passaram a reunir-se em comunidades – os cenóbios ou mosteiros. O monasticismo foi, durante muitos séculos, a principal fonte de renovação e reforma na vida da igreja.
Ultimato – Quem cunhou a célebre frase Ecclesia reformata et semper reformanda est? Ela é oportuna?
Alderi – Não se sabe exatamente quando nem quem cunhou essa conhecida frase. Provavelmente ela surgiu após o período da Reforma, tendo se popularizado no século 19. Existem algumas versões da expressão: Ecclesia reformata et semper reformanda est (A igreja reformada está sempre se reformando) e Ecclesia reformata sed semper reformanda (A igreja é reformada, mas está sempre se reformando ou carecendo de reforma). Esse lema é inteiramente oportuno porque traduz a necessidade constante de reforma, ou seja, de retorno aos fundamentos bíblicos e cristãos que devem caracterizar a igreja. A frase ficou especialmente ligada à Segunda Reforma, ou Reforma Suíça, iniciada por Ulrico Zuínglio e João Calvino, que desde o século 16 ficou conhecida como Igreja Reformada ou Tradição Reformada. Uma ironia do protestantismo é que o mesmo surgiu com uma proposta contestadora, revolucionária e libertadora, mas constantemente corre o risco de tornar-se rígido, estático e conservador. Daí a necessidade contínua de reforma. Portanto, a frase é muito oportuna: ainda que não tenha sido usada pelos reformadores, eles certamente concordariam com o seu espírito.
Ultimato – Quando se fala em reforma, o que está em jogo: a questão teológica, a questão ética ou a questão litúrgica?
Alderi – Todas as três. O aspecto mais básico é o teológico, ou seja, as verdades divinas que devem nortear a fé e a vida dos cristãos. Se a teologia não for correta, isso fatalmente terá conseqüências negativas para a ética e para o culto. Por exemplo, se uma teologia dá mais ênfase ao ser humano, suas necessidades, desejos e escolhas, do que a Deus e sua vontade, a ética e o culto daí resultantes também serão antropocêntricos, e não teocêntricos. Isso explica grande parte da crise de valores experimentada por tantos cristãos nos dias atuais. A boa teologia, por mais que não se aprecie essa expressão, é fundamental para a saúde moral e espiritual dos cristãos. E uma boa teologia significa uma teologia bíblica, equilibrada e consistente; uma teologia que resulta de uma saudável interpretação das Escrituras, que leva em conta “todo o conselho de Deus” e não apenas alguns aspectos do mesmo; uma teologia que não é individualista e subjetiva, mas que considera o legado de reflexão bíblica cuidadosa e reverente que recebemos do passado.
Ultimato – Reforma religiosa sempre provoca cisão na igreja?
Alderi – Essa é uma ocorrência freqüente, em virtude das resistências que sempre se manifestam contra os movimentos reformadores por parte daqueles que desejam a manutenção do status quo, inclusive político-eclesiástico. Por outro lado, a maior parte das cisões que têm ocorrido entre os cristãos, especialmente protestantes, não decorre de anseios legítimos de reforma, mas de outros fatores, alguns muito pouco recomendáveis (personalismos, conflitos de liderança, ensinos questionáveis). Historicamente, a Igreja Católica tem demonstrado maior capacidade de absorver tentativas de reforma sem permitir divisões. Todavia, desde uma ótica protestante, as reformas católicas têm sido pouco radicais, limitando-se, na maioria das vezes, a questões administrativas. A chamada “Reforma Católica” do século 16, realizada pelo Concílio de Trento (1545-1563), foi uma reação contra o protestantismo e preocupou-se antes de tudo em reforçar, não em reconsiderar, os pontos que eram questionados pelos reformados.
Ultimato – Reforma religiosa e unidade da igreja — uma é mais importante que a outra?
Alderi – O Novo Testamento nunca coloca a unidade da igreja como um bem supremo, como um valor que deve ser mantido a qualquer preço. É evidente que a unidade é importante, como expressão do desejo do próprio Jesus manifesto em sua oração sacerdotal (Jo 17) e como conseqüência do conceito paulino da igreja como corpo de Cristo. A questão central é o que se entende por “igreja”: seria a instituição visível ou o conjunto dos cristãos, estejam onde estiverem? Por exemplo: dois grupos podem estar dentro da mesma instituição e ainda assim estarem profundamente separados um do outro, sem nenhuma comunhão entre si. É o que acontece, por exemplo, com os integrantes da TFP e os partidários da Teologia da Libertação. Por outro lado, no meio evangélico membros de diferentes igrejas se tratam como irmãos e participam de projetos comuns. Onde está havendo mais unidade? Os cristãos devem se preocupar tanto com a pureza quanto com a unidade da igreja, sem sacrificar uma por causa da outra.
Ultimato – A reforma religiosa sob o ponto de vista da história costuma ser um processo vagaroso ou um acontecimento abrupto?
Alderi – Nem uma coisa nem outra. A maior parte das reformas verificadas no cristianismo não ocorreram de modo muito rápido nem muito prolongado. Um bom exemplo é o pietismo alemão, o famoso movimento revitalizador do luteranismo no final do século 17 e início do século 18. O movimento surgiu e produziu os seus melhores frutos dentro de algumas décadas, sob a direção de dois líderes notáveis: Phillip Jacob Spener e August Hermann Francke. Outro exemplo relevante é o puritanismo inglês, um movimento de grande impacto renovador nas áreas da teologia, da espiritualidade e da pregação, que em poucas décadas afetou profundamente toda uma nação.
Ultimato – Por que a Reforma Protestante e a Reforma Tridentina não deram o mesmo resultado?
Alderi – Por causa dos objetivos radicalmente diferentes das duas reformas. A reforma protestante foi um movimento contestador, restaurador, de retorno ao que os reformadores entendiam serem os fundamentos bíblicos dos quais a igreja romana havia se afastado. Por sua vez, a reforma católica foi um esforço de preservação da tradição e da identidade católica frente à contestação protestante.
Ultimato – Qual a diferença entre reforma e reavivamento? Os dois eventos caminham juntos?
Alderi – A reforma tem a ver com a restauração da verdade bíblica, com o resgate das convicções básicas da fé cristã, em suma, com o aspecto teológico, doutrinário. O reavivamento está mais ligado à vida prática, à espiritualidade, à comunhão com Deus, ao aprofundamento da vida cristã. Sem avivamento, a reforma pode tornar-se fria, formal e árida, reduzindo-se a uma mera preocupação com a ortodoxia. Por outro lado, sem reforma, o avivamento pode descambar para o emocionalismo superficial e efêmero, para o individualismo que busca experiências arrebatadoras, mas sem um compromisso profundo com Deus e com a igreja. Os dois fenômenos nem sempre caminham juntos, mas deveriam caminhar. O apóstolo Paulo apresenta a fórmula ideal ao exortar os efésios: “Seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é o cabeça, Cristo” (Ef 4.15).
Ultimato – Houve algum desvio significativo na história recente da igreja (século 20) que justificaria uma reforma hoje?
Alderi – A Igreja Católica demonstrou alguns elementos muito positivos ao longo do século 20, principalmente o despertamento para o clamor dos sofredores, a luta em prol da justiça social, a defesa da dignidade da vida humana. Outros eventos auspiciosos foram a renovação litúrgica e a abertura para o diálogo interconfessional em conseqüência do Concílio Vaticano II. Todavia, desde uma ótica protestante, essa grande e antiga igreja continua a carecer de reforma no âmbito teológico, em virtude da manutenção de convicções e práticas que não encontram respaldo escriturístico e que nunca foram aceitas pela igreja apostólica. O maior exemplo é o culto prestado a Maria e aos santos, que obscurece e relativiza a devoção plena e exclusiva que os cristãos devem à Trindade (“Ao Senhor, teu Deus, adorarás, e só a ele darás culto” – Mt 4.10). No meio evangélico, por outro lado, ocorreram alguns desdobramentos preocupantes durante o século 20. Um deles foi o progressivo abandono das grandes verdades proclamadas pelos reformadores e seus herdeiros, as chamadas “doutrinas da graça”, em prol de uma teologia centralizada no ser humano, nas suas necessidades e nos seus desejos. Uma das principais áreas em que isso se reflete é o culto. Outro problema é a crescente assimilação, por parte dos evangélicos, dos valores da sociedade de consumo, mediante o discurso pretensamente bíblico da teologia da prosperidade e do sucesso. O resultado é uma espiritualidade imatura, egocêntrica e alienada dos problemas sociais.
Ultimato – Em 1989, o padre belga José Comblin, numa palestra pronunciada no seminário sobre Evangelização e Modernidade, promovido pela CNBB, em Brasília, disse que “a Igreja Católica vai ter que morrer para começar a falar em reforma”. Qual das três vertentes cristãs (católica romana, ortodoxa e protestante) é mais aberta a uma possível reforma?
Alderi – Depende da natureza dessa reforma. Os católicos são mais abertos para reformas nas áreas administrativa (direito canônico), litúrgica e devocional, mas fortemente avessos a reconsiderações de suas posições no aspecto doutrinal. Os protestantes, por causa da sua própria história e mentalidade, têm maior abertura para mudanças nos aspectos teológico e comportamental. A igreja ortodoxa é a mais conservadora das grandes tradições cristãs.
Ultimato – Como situar o fenômeno pentecostal e carismático do início do século passado e, sobretudo, o fenômeno neopentecostal, bem mais recente? Essas igrejas são filhas da Reforma Protestante?
Alderi – O fenômeno pentecostal surgiu nos primeiros anos do século 20, mas foi fruto de eventos que ocorreram no protestantismo americano ao longo de todo o século anterior, a partir do Segundo Grande Despertamento (1800-1830). Esse avivamento resultou em um grande crescimento da Igreja Metodista, com sua tradicional ênfase na santidade, no ativismo e no “perfeccionismo cristão”. Posteriormente, na segunda metade daquele século, surgiu dentro do metodismo o movimento de santidade (“holiness”), do qual, por sua vez, derivou o pentecostalismo. Os estudiosos dizem que o movimento holiness do século 19 já possuía todos os elementos do futuro pentecostalismo, exceto o falar em línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo. Não deixa de ser significativo que o pentecostalismo teve grande aceitação em segmentos marginalizados da sociedade americana, como os negros e os imigrantes. Num segundo momento, a partir da década de 50, surgiu o movimento carismático, que foi a ocorrência de fenômenos e ênfases pentecostais na Igreja Católica e nas denominações protestantes históricas, também nos Estados Unidos.
Já o neopentecostalismo, ou “pentecostalismo autônomo”, consiste em um fenômeno das últimas décadas do século 20. Num certo sentido, trata-se do pentecostalismo clássico levado às suas últimas implicações. Esse movimento mais recente mantém algumas características históricas do seu antecessor, mas ao mesmo tempo afasta-se dele em alguns aspectos importantes. O pentecostalismo clássico é conservador nos aspectos doutrinário e litúrgico, e estabelece forte dicotomia entre a igreja e a sociedade. O neopentecostalismo é inovador, está aberto para novas experimentações e não hesita em abraçar certos valores da cultura circundante. No Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus se coloca numa categoria à parte, mesmo entre os neopentecostais, por causa da sua ousadia quanto ao significado dos bens materiais, do uso de técnicas de marketing e das contínuas adaptações a elementos da religiosidade brasileira.
Essas igrejas ainda podem ser consideradas filhas (ou netas) da Reforma Protestante, por manterem certos elementos básicos da mesma (justificação pela fé, ênfase nas Escrituras, sacramentos bíblicos etc.). Ao mesmo tempo, determinados grupos, especialmente neopentecostais, têm se afastado perigosamente de algumas ênfases centrais da Reforma ao darem destaque excessivo a experiências subjetivas e revelações especiais como norma de fé. Ou seja, praticam uma interpretação bíblica alegorizante e tendenciosa, ao dão aos seus líderes um papel crescente como mediadores das bênçãos divinas e especialmente privilegiam um entendimento pouco saudável da vida cristã em termos de uma transação com Deus, e não como uma dádiva graciosa do seu amor imerecido.
Ultimato – Na presente conjuntura histórica, o que você aconselha aos jovens que nasceram e cresceram na pós-modernidade?
Alderi – Em primeiro lugar, a mentalidade pós-moderna é caracterizada pelo individualismo e o subjetivismo. O indivíduo se torna o centro de todas as coisas, e seus desejos, preferências e satisfação pessoal passam a ser os alvos supremos. Os jovens devem resistir a isso, procurando ir além dos projetos meramente individuais e cultivando o idealismo, a solidariedade, o envolvimento com os desafios e as oportunidades da vida comunitária. Isso pode ser desafiador, e exigir disciplina e algumas renúncias, mas é uma experiência que enriquece e aprofunda a vida. Outra característica negativa da pós-modernidade é o relativismo, a falta de referenciais seguros, de valores sólidos pelos quais vale a pena viver e morrer. Diante disso, os jovens cristãos devem cultivar uma identidade clara quanto à sua fé e procurar ter convicções firmes e consistentes, tanto doutrinárias quanto éticas. Por último, o pós-modernismo tem a tendência de supervalorizar as conquistas do presente e desprezar o passado. Os jovens moldados pela cultura pós-moderna precisam saber que o mundo não começou com eles, e que existe beleza e relevância em muitas coisas legadas pelas gerações anteriores.
Fonte: Revista Ultimato, edição 295 – jul/ago de 2005.

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