terça-feira, 4 de outubro de 2011

Dialogismo: Teologia e Filosofia


   *Bruno Pontes da Costa

“A ideia de Deus é parte do homem. Nasceu com ele. Ao longo dos milênios, o homem procurou na religião resposta para muitos dos enigmas do universo e para as dúvidas do seu interior. Mesmo transitando da vida das cavernas ao moderno deslumbramento científico, ele não repudiou a divindade. Ainda quando a razão tenha proposto soluções científicas e filosóficas para enigmas e dúvidas, o apelo da fé continua a ressoar nos corações, apontando para uma realidade posta além das conquistas racionais”. 
Victor Civita


    Na antiguidade, principalmente no Antigo Oriente, a filosofia confundia-se com a religião. Eles possuíam verdades filosóficas e não da filosofia propriamente dita.
    Com os filósofos gregos, o sentido religioso já não se faz presente na filosofia, mantendo ainda o aspecto mítico histórico e teológico, posto que a filosofia vá confundir-se com a ciência (ratio), embora conservando o seu aspecto universal.
   Na Idade Média, há um retorno da filosofia à religião, dentro de uma perspectiva classicista, no caso, com o cristianismo, quando a razão se harmoniza com a fé (fide) e a filosofia com a teologia.
     Vamos encontrar na escolástica o auge dessa discussão. O ensino escolástico se baseia em textos lidos e discutidos. Dentre estes textos estão os evangelhos, obras de sacerdotes cristãos e de teólogos. Nesse contexto, sobressai Santo Tomaz de Aquino, filosofando a teologia.
    Muito antes, Santo Agostinho já não via muita diferença entre a natureza-objeto da filosofia e o além-natureza – objeto da teologia. Mas Santo Agostinho não confiava na natureza humana; ele achava que o homem necessitava da graça, elemento sobrenatural, para realizações puramente naturais. Ele dizia que a fé é preparada pela razão e prolongada por esta; que era “preciso crer para compreender e compreender para crer”. Santo Tomaz aperfeiçoa o pensamento Aristotélico, estabelece o verdadeiro objeto da filosofia e distingue esta da teologia, mas não as separa. Ele diz que as verdades da fé servem de iluminação para os caminhos do pensar filosófico; que a própria filosofia explicaria a fé se excedesse um pouco mais na demonstração das verdades reveladas, lembrado por John Stott em "Crer é também pensar". Faz as diferenças, quando diz que:

. o filósofo demonstra por razões evidentes. (usando o campo de conhecimento filosófico).

. o teólogo usa à autoridade suprema da revelação divina. (utilizando o conhecimento teológico).
   
    E acrescenta que Deus é autor de nossa razão e autor da revelação:

. Que a  sabe o que sabe por aceitação referencial da autoridade divina, sob reflexão, enquanto:
. A razão sabe o que sabe por própria atividade racional.
   
    Mas não podem contradizer-se, porque os princípios do raciocínio foram postos em nós por Deus, que é o mesmo autor da revelação recebida pela fé.
   Na diferença por finalidade, Santo Tomé diz que a teologia nos dá acesso às verdades necessárias à salvação, que Deus não nos revelou todas as verdades possíveis sobre as coisas, daí haver a possibilidade da filosofia na investigação das coisas, quando a própria Escritura Sagrada, menciona "coisas ocultas, não reveladas", como um instrumento dialógico.
     Pelos métodos, ele diz que o filósofo tira seus argumentos das essências das coisas, ou seja, de suas causas próprias visíveis, e o teólogo, ao contrário, parte sempre da Primeira Causa ou de Deus, do argumentos invisíveis, próprios da fé.
    Como se vê, Santo Tomaz, mesmo tendo feito uma distinção nítida entre filosofia e teologia, reclama a colaboração estreita entre ambasNo correr do séc. XIII, os chamados averroístas, latinos, que seguiam a filosofia aristotélica, exigiam uma filosofia totalmente independente da teologia rejeitado por São Tomaz. De certa forma, São Tomaz distinguiu a filosofia da teologia, mas não a separou.
    Alguns autores afirmam que a Escolástica é teológica; que teologia e filosofia coexistem intrinsecamente dependentes.
    Julián Marías dá o exemplo do dogma da Eucaristia, que é algo religioso, que em si mesmo nada tem a ver com a filosofia, mas que, para compreendê-lo, podemos recorrer ao conceito de transubstanciação, que é um conceito filosófico, bem como no meio protestante (cristão) “a ceia”, podendo ser consubstanciação ou memorial.
    Sabemos que a transubstanciação é a mudança de uma substância em outra, no caso, a presença de Jesus Cristo no Sacramento Eucarístico ou a transformação física do pão e do vinho, no corpo e no seu sangue de Cristo.
    Manuel Garcia Morente diz que: nas coisas humanas e mundanas, a garantia do acerto ou da verdade é exigida em forma de provas e demonstrações que nos convencem de que o pensado ou o falado coincide com o objeto a que se refere.
    Mas se o objeto está fora do alcance de nossa faculdade de comprovar e demonstrar e se de outra parte a afirmação vem acompanhada de evidentes sinais que a indicam como de procedência divina, então é possível e conveniente, e necessário recebê-la por verdadeira, embora não possamos comprová-la.
    Leonel Franca, em “A crise do mundo moderno” (José Olímpio, Rio, 1941, p.90-1), diz que entre a filosofia e a teologia há uma distinção de espécie.   Digo isso por motivos lógicos, pois, são campos de conhecimento diferentes.  
    
    Diferem pelo conteúdo e mais ainda, pelo método de demonstração:


- A FILOSOFIA estende o seu domínio sobre a universalidade das coisas naturais submetidas ao nosso conhecimento humano limitado;
- A TEOLOGIA restringe-se por si ao número das verdades necessárias, ou dependendo, conveniente à nossa salvação a respeito das coisas inteligíveis.
   
    Na imensa extensão destes dois campos, delimita-se uma região ocupada simultaneamente pelas duas disciplinas:
    Há teses filosóficas que se acham também incluídas no patrimônio dos dogmas revelados.          
   Mas ainda, neste terreno comum, a heterogeneidade dos princípios demonstrativos impõe entre a filosofia e a teologia uma distinção formal, absoluta e estrita.

   Enquanto o filósofo vai buscar os seus argumentos na análise racional da essência das coisas, na necessidade interna das suas causas próprias; O teólogo, pede-os ao princípio extrínseco de uma revelação histórica, embasada pela sistematização.
    Enquanto a certeza da fé descansa, como em último fundamento, numa autoridade oscilantemente infalível, as conclusões do filósofo são o fruto de processos lógicos em que a razão manifesta integralmente todo o rigor de suas exigências próváveis.
    Entretanto no Séc. XVIII, Descartes rejeita a teologia, quando diz que: na religião “o que interessa é ganhar o céu; acontece, porém, que o céu pode ser ganho sem que nada se saiba de teologia; o que evidencia a manifesta inutilidade desta”.
     Descartes preparou uma cisão entre a filosofia e a teologia, por um pensamento próprio, tendo Guilherme de Ockham completado este cisma, considerando a filosofia autônoma e completamente diferente da teologia, uma ciência totalmente oposta. Posteriormente, alguns admitiam da teologia apenas a fé, separando totalmente esta de qualquer valor teórico. Outros rejeitaram radicalmente a fé, professando uma filosofia anti-religiosa, ateísta, a qual se estende até os nossos dias. Daí o preconceito e a dificuldade de aceitar e compreender a filosofia no campo religioso.
    Enfim, podemos concluir que: a Filosofia é autônoma em relação à Teologia?
    Entendo que a fonte da Filosofia são as faculdades naturais da razão, do afeto e da vontade. A fonte da teologia, pelo contrário, é a revelação e a graça de Deus manifesta pela intimidade do ente com o seu criador, sua divindade.
    O fim da Filosofia é a sabedoria humana e natural (mundividência Creta, modo de viver devido, salvação e felicidade), enquanto o fim da Teologia é a aquisição da sabedoria divina ou sobrenatural (conhecimento da revelação, vida virtuosa sobrenatural, justificação e bem-aventurança).

    No começo da idade moderna, a ciência toma vulto e a fé passa a ser considerada uma fantasia, um mito, como consideram, no nosso século, o positivismo, o pragmatismo, o materialismo, o biologismo, o ateísmo, etc.
   Mas, acrescenta PFEIL, que a fé dá ao filósofo a serenidade para a reflexão filosófica, o que não acontece com o existencialismo, cuja angústia e desespero, ao tratar os problemas de mundividência, de homens sem fé, levam-nos a conclusões precipitadas e irracionais.
    Em teologia e filosofia o que se pode afirmar de verdade é que se faz necessário crer para poder pensar e pensar com a razão para se poder acreditar, pois, segundo Paulo de Tarso, "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional" (Romanos 12:1)**.

* É Pastor Batista e Educador, mestrando em Ciências da Educação pela Universidade Lusófona e Teologia pela FATEFFIR, Especialista em Ética, Subjetividade e Educação e bacharel em Teologia e Sociologia.
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**Apresentar os nossos corpos a Deus é o nosso “culto racional” (Romanos 12:1). Qual o significado desta expressão? Para entender o termo usado por Paulo, devemos compreen-der as duas palavras que ele empregou.
Culto traduz uma palavra grega (latreia) que aparece cinco vezes no Novo Testamento. Na Almeida Revista e Atualizada 2ª Edição, é traduzida “culto” em João 16:2; Romanos 9:4 e 12:1 e “serviço(s) sagrado(s)” em Hebreus 9:1 e 6. Significa serviço. Pode ser o serviço de obediência a Deus em geral, ou pode se referir, como nas duas citações em Hebreus 9, aos atos específicos de louvor dirigidos a Deus. Assim, a palavra culto, em nosso uso hoje, corretamente descreve o serviço dado ao Senhor quando cristãos o adoram. Mas, a mesma palavra pode abranger qualquer ato de obediência que honra o nome de Deus.
Racional vem da palavra grega logikos. Nesta palavra, não é difícil ver a idéia da lógica ou raciocínio. Este adjetivo aparece, no Novo Testamento, somente aqui e em 1 Pedro 2:2, onde descreve o leite espiritual. A forma do substantivo (logos), porém, aparece mais de 300 vezes no NT, e é traduzida por termos como palavracontaensinamentomododitadotestemunhoverbo, etc. A idéia principal tem a ver com discurso e raciocínio.
O que é, então, o nosso culto racional? Uma vez que entendemos o que Deus tem feito por nós, faz sentido nos dedicar a ele em obediência e serviço. O uso da palavra “pois” em Romanos 12:1 mostra que este serviço razoável se baseia nas coisas ditas anteriores. Paulo acabou de falar sobre a profundidade da riqueza de Deus, que nos criou e nos deu a salvação de graça (Romanos 11:33-36). Por isso, devemos nos dedicar ao Senhor.
Nenhuma outra resposta faz sentido. Rejeitar o Deus que nos deu a vida – duas vezes! – seria loucura. Não amar aquele que nos ama tanto não seria sensato. Rebelar-se contra o soberano que tem demonstrado sua bondade e severidade (Romanos 11:22) seria totalmente ilógico.
Romanos 12:1 frisa um fato importante no estudo da palavra de Deus. Nosso estudo nunca deve se reduzir a um exercício acadêmico – aprendendo só para saber. O conhecimento da palavra de Deus exige uma aplicação prática. A maioria das cartas do NT, como é o caso de Romanos, contém uma série de aplicações práticas no final, depois de estabelecer a base doutrinária. Tiago disse: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra, e não somente ouvintes” (Tiago 1:22). Este é o nosso culto racional!

BOEHNER, Philotheus  GILSON, Etienne. História da Filosofia Cristã. Trad. Raimundo Vier, 2ª ed. Petrópolis, Vozes, 1982, p.570-2.

STOTTJohn R. W. Crer é também Pensar. A importância da mente cristã. Trad. Milton Azevedo Andrade. Sexta impressão. ABU Editora. São Paulo, SP. 1994.

DESCARTESRené.Discours de la Méthode II. p. 15. In: HORKHEIMER, M. Teoria Tradicional e Teoria Crítica. São Paulo, Abril Cultural, 1983.

HEGEL G. W. FriedrichEnciclopédia das Ciência Filosóficas em Epítome. Lisboa, Edições 70, 1989.

_______. Princípios da Filosofia do Direito. Lisboa, Guimarães Editores, 1990.

_______. Introdução à História da Filosofia. Lisboa, Edições 70, 1990.
 
Bíblia Sagrada. São Paulo, SBB, 1996
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